No dia 01 de maio de 1895, na então pequena vila de Amapá, Francisco Xavier da Veiga Cabral, o Cabralzinho, rechaçou uma invasão francesa ao comando do capitão Lunier. Este fato foi o mais radical da questão do Contestado do Amapá, que foi resolvido somente cinco anos mais tarde, através de arbitragem internacional. Isto aconteceu há 111 anos (Estamos em 2006). Os franceses comandados por Lunier chegaram para obedecer às ordens do governador de Caiena, Mr. Charvein, que queria a prisão imediata de Cabralzinho caso este não colocasse em liberdade o "delegado" francês Trajano, que havia sido feito prisioneiro do Exército Defensor do Amapá, uma força paramilitar comandada por Cabralzinho. Por ter defendido a vila de Amapá, Cabralzinho foi consagrado herói nacional pelas Forças Armadas, que lhe deram o título de General Honorário do Exército Brasileiro, e pela Maçonaria, a qual Cabralzinho era membro. Eis sua história:
Forma-se o Triunvirato
No tempo da Cabanagem, os franceses construíram uma fortificação nas imediações de Amapá, mais precisamente numa localidade banhada pelo lago Ramudo Essa guarnição francesa foi descoberta pelo capitão Harris que, imediatamente comunicou o fato ao governo imperial do Brasil. Assumindo o Segundo Império, D. Pedro II resolveu, com o seu colega de França, Napoleão III, neutralizar a região disputada pelos dois países, hoje a área situada entre os rios Oiapoque e Araguary.
Assim, a área passou a se chamar Contestado Franco-Brasileiro, com um representante no Brasil morando em Belém, e outro da França morando em Caiena. O local-sede do contestado era então a vila do Espírito Santo do Amapá. A descoberta do ouro no rio Calçoene, em 1894 (há autores que mencionam 1893), pelos garimpeiros paraenses naturais de Curuçá, Germano e Firmino, veio despertar maior interesse da França e do Brasil na posse definitiva do Contestado. Do lado francês é nomeado Trajano, escravo fugitivo de Cametá (no Pará) que passou a atuar em Cunani como delegado francês. Em Amapá (àquela época vila) quem representava os interesses da França era Eugene Voissien, que veio mais tarde proibir o acesso de brasileiros à área aurífera, franqueando o direito apenas aos "crioulos" de Caiena.
Casa de Cabralzinho - Acervo Edgar Rodrigues
Com a situação criada por Voissien, os amaparinos começaram a reagir e o primeiro passo foi cassar os direitos do representante francês. Assim, reunida em 26 de dezembro de 1894, a população depôs Voissien e criou um governo triúnviro, do qual assumiram o cônego Domingos Maltez na presidência, tendo como vices Francisco Xavier da Veiga Cabral e Desidério Antonio Coelho. A sugestão do Triunvirato foi de Desidério que, escolhido no dia 10 do mesmo mês para ser o líder de um governo independente em Amapá, sugeriu uma nova reunião para que a administração passasse a ser exercida por três pessoas. No dia seguinte é criado o Exército Defensor do Amapá, para tentar garantir a ordem no local. A formação do governo triúnviro é comunicada em seguida a Belém.
Trajano é preso em Cunani
Na vila de Cunani, que já foi república independente por duas vezes (1889 a 1902), Trajano continuava com suas atitudes de perseguição aos brasileiros que se fixassem por lá, chegando até mesmo a rasgar a bandeira brasileira e, em seu lugar, fazer tremular a francesa, sob os acordes de Marselha.
O cônego Domingos Maltez, nos primeiros anos de 1895, deixa a presidência do Triunvirato e assume, em seu lugar, o vice, Cabralzinho. Uma das primeiras providências tomadas por Cabral foi atender a uma carta assinada pela população de Cunani relatando as atitudes de Trajano no local. Sem procurar instaurar qualquer inquérito, o que era de praxe nessas situações, Cabralzinho enviou uma guarnição a Cunani para mandar intimar e prender Trajano. Foi encarregado da missão o major Félix Antonio de Souza, que levou consigo uma proclamação oficial do Triunvirato aos brasileiros daquele distrito.
Os franceses invadem a vila
Era uma quarta-feira, 15 de maio de 1895. A população adulta se encontrava nos seus afazeres diários, seja no centro da vila, seja no campo, tomando conta do gado ou das "tarefas da roça". Cabralzinho encontrava-se em sua casa descansando, próximo à Igreja, pois havia chegado de madrugada de uma viagem que fizera, para atender a uma criança doente na região dos Lagos.
Os franceses desde cedo vinham subindo o rio Amapá Pequeno, a bordo da canhoneira Bengali, que era pilotada por um brasileiro de nome Evaristo Raimundo. O comando era do capitão-tenente Lunier e a missão tinha a finalidade de prender Cabralzinho se este resistisse à ordem de soltar Trajano. Após a prisão de Cabral, os gendarmes deveriam leva-lo para Caiena.
Os invasores desembarcaram às 9 horas e foram logo em direção à residência de Veiga Cabral. A casa foi cercada por uma patrulha enquanto que outra vinha do outro lado, deixando um rastro de mortes entre velhos, mulheres e crianças amaparinas.
As declarações do capitão Lunier foram ouvidas com bastante clareza. Diante da negativa de Cabralzinho, formou-se o combate. Com poucos minutos os amigos de Cabral começaram a vir, e oitenta homens, comandados pelo capitão Lunier, começaram a lutar descontroladamente, talvez por causa da morte de seu comandante, e preocupados também com a baixa da maré que provocaria, com certeza, o encalhe da embarcação, que tinha casco muito fundo.
Se Cabralzinho matou ou não Lunier com a própria pistola do gendarme francês, agora o fato não interessa. A reação dos brasileiros e o massacre de amapaenses ocorrido na vila apressou de uma vez a resolução do conflito do Contestado, cujas conclusões saíram no dia 1º de dezembro de 1900, cinco anos depois, pelo presidente da Suíça, Walter Hauser, que fora escolhido como mediador da questão. Mas a repercussão dos acontecimentos ocorridos no Amapá foi de grande valia no cenário da imprensa internacional. No Brasil a Imprensa se movimenta com protestos contra a pretensão do governador de Caiena, Mr. Charvein, em pretender fuzilar os brasileiros levados prisioneiros pelos franceses. O próprio governador de Caiena coloca como prêmio de um milhão de francos a quem capturar vivo Cabralzinho.
As relações diplomáticas entre o Brasil e a França necessitavam de providências urgentes. O governo francês reconheceu a responsabilidade de Mr. Charvein pelo massacre ocorrido em 15 de maio de 1895. O seu afastamento do comando de Caiena foi imediato, valendo-lhe, como "prêmio", uma aposentadoria compulsória. De 1896 a 1897, Cabralzinho percorre o sul do país como herói nacional e defensor da Pátria. Mas a imprensa francesa insiste em declarar Cabralzinho culpado. O fato só foi resolvido com o Laudo Suíço expedido pelo presidente Walter Hauser, em 1º de dezembro de 1900, em que dá ganho de causa ao Brasil na questão do Contestado.
Vítimas da Invasão
O jornal paraense "Diário de Notícias", em edição de 12 de junho de 1895, quase um mês depois do ocorrido, publica a relação das vítimas do massacre, com indicação de nomes, idade e informações a respeito da morte:
Brasileiros mortos
Nome Idade Como morreu
Joaquim Pracuúba 10 anos Queimado vivo em sua própria casa. Semi-paralítico, não tivera tempo de fugir às chamas;
Margarida de Freitas 32 anos Massacrada com o próprio filho ao colo;
Clemente Freitas 80 anos Morto com um tiro de fuzil quando se encontrava deitado em uma rede, no interior de sua residência;
José Rolandes Rosas 30 anos Morto a tiros;
Joaquim Rodrigues 37 anos Morto a tiros;
Manoel Joaquim Ferreira 35 anos Morto a tiros;
Gertrudes de Macedo 30 anos Massacrada;
Ana Vieira Branco 37 anos Morta juntamente com seus quatro filhos menores, o último com quatro meses de idade. Era casada com Manoel Gomes Branco.
Solindo Vieira Massacrado
Joaquim (músico) 17 anos Massacrado.
Raimundo M. Siqueira 57 anos Massacrado
Maria Floripes do Amaral 45 anos Massacrada em sua casa;
Domingos Favacho 37 anos Morto a tiros;
Francisca Favacho 44 anos Massacrada;
Caetano Favacho 37 anos Morto a tiros;
Carolina 37 anos Morta a tiros;
Gemino de Morais 21 anos Morto a tiros;
José de Morais 15 anos Massacrado;
Maria Cooly 24 anos Massacrada;
Fabrício 1 ano Morto com a mãe, Maria Cooly
Leocádia Tambor 48 anos Massacrada em sua casa;
Manoel 7 anos Massacrado juntamente com a mãe
Alfrida Batista da Silva 13 anos Morta com a mãe;
Feliciano Ramos 65 anos Morto a tiros;
Pedro Chaves dos Santos 26 anos Morto a tiros;
Francisco Manoel Rodrigues 44 anos Massacrado (era português)
Rosa Xavier 16 anos Massacrada;
Antonio Bonifácio Belmiro 19 anos Serviu de guia aos franceses, sob prisão, e logo a seguir foi colocado à frente dos combatentes servindo de barricada. Morto em combate.
Cipriano Menor Filho de Manoel Domingos, massacrado;
Mateus Leite 30 anosSeu corpo não foi encontrado
Manuel dos Santos 49 anos Morto em fuga;
Raimundo Brasil 09 anos Massacrado (filho de Francelino Freitas)
João de Deus 42 anos Morto em casa de Bernardo da Silva
Feridos em combate
Nome
Antonio Portugal João (filho de Domingos da Cruz)
Bernardo Silva, 8 anosLaurindo da Silva
Desidério Antonio CoelhoLeandro Favacho
Eleriano dos Santos PimentelLucas Evangelista Pinheiro
Epifânio Pedro da LuzManuel Favacho
Feliciano CostaMaria Josefina
Fernando Félder (holandês)Maximiano do Espírito Santo
Franklin SilvaSabino da Penha Leite
Geraldo Antonio Carvalho
O Diário de Notícias conta ainda que houve quinze brasileiros que se embrenharam pela floresta ante a fúria dos atacantes, quando começou o massacre. Os franceses incendiaram as casas comerciais de Manuel Gomes Franco, Raimundo Macedo de Siqueira, Antonio Carlos Vasconcelos e Daniel Ferreira dos Santos. Da família de Antonio Carlos Vasconcelos ficaram quatro crianças e cinco adultos em miséria total, apenas com a roupa do corpo.
Esse foi o movimento macabro da invasão francesa ao Amapá em 15 de maio de 1895, e o presidente Walter Hauser, da Confederação Suíça, escolhido para arbitrar a questão, finalmente em 1º de dezembro de 1900, cinco anos mais tarde, acaba com o litígio, dando ganho de causa ao Brasil, da região do Amapá, hoje com autonomia e status de Estado da federação brasileira. Francisco Xavier da Veiga Cabral hoje figura no cenário nacional como um dos heróis, reconhecido pelo Exército Brasileiro que lhe outorgou a patente de "general honorário", e pela Maçonaria, a quem pertencia como membro.
Texto elaborado por Edgar Rodrigues